13 novembro, 2006

Novamente azul

Era fotógrafo, mas agora trabalhava com restaurações. Quando deixou de ganhar a vida como lambe-lambe na praça Clóvis, pintou uma placa bonita que só vendo, com os dizeres: “Retratos e Restaurações Artísticas”. Fez algumas cópias e colou na portaria do prédio, na escola do bairro, na igreja e, aos poucos, os trabalhos foram chegando.
O primeiro foi do porteiro, seu Adamastor, que tinha uma foto velhinha e toda desbotada da mãe, que não via desde os vinte anos, quando veio do norte pra São Paulo. Nem no enterro dela, ele pôde ir, então queria guardar uma imagem bonita da mãe quando moça.
O fotógrafo não gostou muito de seu primeiro serviço ser de gente morta. Deixar de ser lambe-lambe pra ser papa-defunto? Mas fazer o que, se precisava pagar o aluguel, a luz, o condomínio... Fez. E não é que ficou bom? Seu Adamastor gostou, e logo voltou trazendo outra foto, agora do pai, também falecido.
Com o tempo, deixou de se incomodar com a função e passou até a gostar de restaurar fotos de gente que já havia morrido, mas uma coisa lhe incomodava profundamente: suas restaurações tinham um ar meio cinzento, apagado, sem cor e ele não conseguia fazer diferente, afinal, aquelas pessoas todas já estavam mortas...
Um dia,uma moça veio trazendo duas fotos, uma da mãe, em que se percebia que alguém, ao lado dela, havia sido riscado até desaparecer completamente, e outra do pai. Contou que os dois se separaram quando ela era ainda menina; o pai, mulherengo, gastava todo o dinheiro no jogo e na cachaça. A mãe não agüentou e se separou. Depois riscou com ponta de faca todas as fotos em que ele aparecia. A moça pediu pro fotógrafo juntar os dois na mesma foto.
Ele achou aquilo um absurdo, um despropósito! Juntar, na mesma foto, dois mortos que já estavam separados há tanto tempo? De todo modo, apesar de se sentir um invasor, era só mais um trabalho e ele fez, como fez todos os outros, naquele tom meio opaco, cinza e sem luz, que se acostumou a usar pra pintar gente morta.
No dia combinado, a moça voltou, trazendo com ela uma senhora bem velhinha.
- Essa aqui é minha mãe, ela veio ver como ficou a foto.
Pânico. Estupefação. Desespero: a mulher estava viva! Só então, a filha explicou que, “apesar do divórcio e da morte dele, o amor permaneceu e, portanto, partiu dela (da mãe) o desejo de reconstituir o momento mágico do início do casamento que um fotógrafo-pintor tão bem retratou e a convivência desgastou.”
Depois da explicação, ele inventou uma desculpa qualquer. Culpou o tempo chuvoso, a artrite, culpou o cachorro da vizinha que não o deixava trabalhar sossegado e pediu mais uns dias pra terminar o trabalho.
Quantas cores diferentes ele usou naquela restauração.... ela estava viva e ele deixou de restaurar a lembrança de pais mortos, para recriar o sonho de um casamento feliz. O cinza se tornou vermelho, o opaco virou azul, o branco luziu no escuro.

Ele refez tudo e nem percebeu o trabalho que deu. "A viúva ficou mais viva na cor original da foto e o fundo, antes fosco, ganhou uma textura suave, como o amor das antigas lembranças. Aquele em que as divergências desaparecem e o mundo todo se torna, novamente, azul".

(Baseado numa história real, que só podia ter acontecido com quem aconteceu... beijo grande pra você, que, através de sua lente e de seu photoshop, faz com que a gente acredite que a liberdade é azul, a igualdade é branca e a fraternidade é vermelha - não necessariamente nessa ordem...)

8 comentários:

Anônimo disse...

Adoro visitar seu blog, todo mundo já sabe. Só que hoje você abriu a torneirinha das emoções e elas escorreram pelo monitor, molharam o teclado e saltaram diretamente para o meu olhar. E houve um vendaval de sentimentos, uma revolução sináptica que resultou em uma chuva torrencial, que aos poucos foi virando uma garoa fina e agora resta apenas uma pocinha de lágrimas em cima da mesa.
A vida não teria sentido sem o “outro”, aquele espelho crítico e realista, porém capaz de nos lembrar quem somos e do que somos capazes.
Só mesmo você pra recontar tão bem essa história.
Obrigada por existir em minha vida.
Beijos na alma

L. disse...

Turkhesa querida, era pra ser secreto.... rss.... adoro você. graaaaaaande beijo!

L. disse...

Cris querida!!!!! Já dei uma passada rápida pelo seu blog, hj vou lá com mais calma pra comentar. É isso aí, menina!!! Tem que publicar seus textos mesmo... Que bom que vem aqui, continue vindo! Grande beijo.

Anônimo disse...

vc assistiu aquele filme The others com Nicole Kidman onde havia fotos de mortos? Mas não eram de qdo eles eram vivos e sim de quando estavam mortos. Era costume tirar foto.
Hi, sweetie! Abandonei aqui por absoluta falta de tempo, mas em breve poderei voltar a ler seus textos que, por sinal, amo de paixão!

Anônimo disse...

That´s me, Lina! Hunf!

L. disse...

Helô querida, assisti sim. Esse lance de tirar foto de morto era um costume super forte aqui também. Minha avó tinha um álbum com pelo menos umas 3 fotos de gente no caixão, com aquele monte de flor em volta... credo, né? beijo!

Anônimo disse...

nossa tia nunca tinha visitado seu blog, mas estou adorando os textos!
Sempre que possível estarei aqui dando uma espiadinha.
Bjao

L. disse...

Juice querida!!!!! Seja bem vinda!!! Grande beijo.