02 fevereiro, 2006

Canto de Iara

A criança nasceu mirrada, aos cinco meses de gestação. Nem o pulmão estava formado direito e a enfermeira já gritava “É uma menina! É uma menina!”. Simone se assustou – “mais uma rachada pra engravidar de vagabundo!” – e não quis vê-la. Saiu no dia seguinte ao parto normal; o bebê, não; teria de ficar internada ainda por um tempo.
Não pensava mais na menina, quando o namorado, dois meses depois, apareceu com o pacotinho mal embrulhado, amarrado junto à mochila – Everaldo era motoboy. Ela não tinha mais leite, os peitos estavam secos, assim como o amor pela filha. Aos 29 anos, Simone não se sentia pronta para a maternidade. Não tinha dinheiro e muito menos vontade de cuidar de uma criança na miséria em que vivia; olhava para a menina e só pensava em encontrar alguém que a quisesse.
O namorado batalhou duro e comprou leite, fraldas, arrumou até um carrinho usado para servir de berço. Agora só lhe faltava um nome, mas a mãe ainda não tinha pensado em nenhum. “Podia ser Iara”, dizia ele, “minha avó contava uma lenda tão bonita sobre ela, a mãe d´água...” A mulher não respondia. Limitava-se a dar o banho de todos os dias, trocar suas fraldas e alimenta-la. Everaldo, ao contrário, mal chegava em casa, ia correndo pegar a garotinha no colo - “cadê a menininha do papai?”.
Não houve tempo para registra-la. Um dia, Simone acordou de madrugada e não viu o homem a seu lado. Levantou-se silenciosamente e o encontrou adormecido numa cadeira com o bebê no colo. Ela não teve mais dúvidas: no dia seguinte, antes que ele voltasse do trabalho em sua velha CG 125, vestiu a menina, a alimentou e saiu em direção à Pampulha. Era um fim de tarde claro, de sol e calor em Belo Horizonte; não havia ninguém por perto, apenas ela e o bebê indesejado.
Simone olhou a menina pela última vez e, sem se despedir, a colocou no grosso saco de lixo preto que trouxera de casa. Em seguida, deu um nó bem apertado e depositou o pequeno embrulho sobre um pedaço de madeira que boiava na água. Deu as costas e se foi para sempre.
A linda Iara, que diariamente vinha à superfície em busca de um pescador que se apaixonasse por seu suave canto, observava, à distância, o mal feito. Assim que Simone se foi, ela soprou forte empurrando o pacotinho para perto da margem. Naquele instante, a criança chorou muito, muito alto, chamando a atenção de um belo pescador que passava por ali. O moço ficou totalmente encantado com seu jeitinho meigo e a levou com ele, salvando-lhe a vida.
Do fundo das águas, a mãe d´água sorriu. Desde o começo sabia que estava salvando uma Iara.

Um comentário:

Anônimo disse...

Há textos difíceis de se comentar. Falar mais o que, diante de tanta sensibilidade poética? Beijos na alma.