11 fevereiro, 2007

E.C.T.

Para Wônia e Nelson.

- Não, Silvino, acabou.
- Como assim, Ofélia? Eu disse pra você que te amava, a gente tava de casamento marcado...
- Disse quando, homem? Eu esperei seis meses por uma carta. Uma carta só, Silvino, desde que você resolveu viajar pra visitar sua mãe, e você não me escreveu uma única linha!!! Agora vem dizer que me ama?
- Como não? Foram 189 cartas, Ofélia, eu te escrevi todo santo dia... você é que nunca me respondeu!
- Mas tu é muito descarado mesmo! Se escreveu, onde é que a carta foi parar? Hein?!!! Responde, seu mentiroso!!! Ainda bem que eu já parei de chorar por tua causa! E quer saber quem foi que me consolou? Foi o Cláudio. Não faz essa cara de espantalho, não!! É isso mesmo, o Cláudio! E eu gostava tanto de você, Silvino... Como eu pude ser tão burra? Todo dinheirinho que eu ganhava, economizava pro enxoval... Sabe o que é que eu fiz com o enxoval, Silvino, sabe? O que eu fiz com o vestido de noiva? Toquei fogo em tudo no ano novo. Ano novo, vida nova, Silvino! Foi aquela fogueira linda, cheia de lençol bordado, toalha de linho e colcha de piquê!

Há pouco mais de seis meses, a mãe de Silvino ficou doente. Ele era o único filho de quem dona Feliciana ainda tinha notícia. Os outros se perderam pelo mundo e ela, viúva, vivia só, num vilarejo sem luz, nem telefone lá nos cafundós do norte do país. Escreveu. Pediu pra que ele fosse vê-la mais uma vez antes que ela morresse, e ele foi: pedido de mãe no leito de morte não dava pra negar. Ofélia e ele tinham ficado noivos por aqueles dias. Iam casar exatamente um ano depois, em setembro do ano seguinte. Ele jurou que passava pouco tempo, um mês no máximo. Pediu férias no trabalho, prometeu escrever, e foi. Coração apertado, na hora da despedida, ainda pediu pro melhor amigo, Claúdio, cuidar da moça pra que nenhum safado se aproveitasse de sua ausência.

- Agora eu e o Cláudio vamos casar, Silvino, já marcamos até a data. Setembro. É, setembro! Eu sempre sonhei em casar na primavera... E você trate de voltar lá pro colo da sua mãezinha que eu não quero te ver nunca mais!
O moço, completamente atordoado, entrou no primeiro bar. Pediu uma bebiba, outra, mais outra e assim foi, a noite inteira.

Quando ele chegou, a mãe até melhorou um pouco de tão contente que ficou em ver o filho mais novo. Depois foi minguando, minguando. "A doença é grave", disse o doutor que ele foi buscar na capital. "Seis meses de vida", sentenciou. Silvino teve pena de deixar a mãe morrer sozinha e resolveu ficar mais um pouco. Todos os dias escrevia uma carta para Ofélia. Uma mais apaixonada que a outra. Nunca pensou que o tempo e a distância pudessem fazer com que ele sentisse tanta saudade. É certo que estranhava a falta de resposta da moça, mas, vai ver, não dava tempo de escrever, coitada, com tanta coisa pra fazer pro casamento.
A mãe morreu no princípio de março e ele voltou pra Severínia, cidadezinha no interior de São Paulo, onde pretendia casar e ter três filhos lindos com a mulher da sua vida.

Assim que soube da volta de Silvino, Cláudio foi procurá-lo. Como é que pôde deixar a noiva tanto tempo sem notícia!? Achou que ele estivesse na casa de Ofélia e passou por lá pra ver se encontrava o amigo. Ela lhe contou a conversa recém terminada. Como ela pôde mentir desse jeito? Que estivesse magoada, vá lá, mas sujar o seu nome nessa mentira deslavada? Ele nunca faria isso com seu melhor amigo, nunca!
Silvino o esperava na porta de sua casa. Antes que dissesse uma só palavra, um tiro varou seu peito. Enquanto caía, pôde ouvir o outro tiro, com que o amigo acabava com a própria vida.
Ofélia, quando soube, colocou formicida no café. Morreu linda, vestida de noiva, com a boca espumando de veneno e culpa, deitada sobre os lençóis bordados, toalhas de linho e colchas de piquê de seu enxoval.
Naquele dia, a cidade, chocada com a tragédia, não leu a notícia que, em tempos comuns, seria a grande manchete de todos os jornais:

"Um carteiro de Severínia, no interior de São Paulo, deixou de entregar três mil correspondências sob alegação de que "não dava conta" do trabalho. Na quinta-feira, a polícia recebeu uma denúncia e foi à casa de Diose Ferreira da Costa, 18 anos, onde recolheu 2,5 mil correspondências - entre cartas, contas e folhetos - não entregues pelo carteiro. Nos próximos dias, o correio promete entregar toda a correspondência atrasada aos cidadãos de Severínia."

Um comentário:

Anônimo disse...

Adoro suas histórias escritas à luz Rodrigueana, essa ficou genial!
Depois dessa notícia do carteiro "baiano" acho que continuarei a mandar só correspondência via e-mail.
Parabéns pelo texto!
Beijocas.