09 outubro, 2006

Flip

Era manhã. Junho, talvez; agosto, se tanto. E era fria, como se inverno - inverno de verdade e não o projeto de frio que faz aqui nos trópicos. Ah, se pudéssemos um frio nórdico.... Mas...
Voltando àquela manhã de junho ou agosto, é preciso dizer que a moça acordou contrariada. No estômago, ainda ardia o sapo engolido às pressas na véspera, depois de bater, com raiva, o telefone celular na cara da outra - ainda que isso fosse possível (em alguns casos, a expressão é muito mais forte que o fato). Fato é que acordou contrariada. “Você vai ver! Fale com ele... Ele dirá que é intriga de alguma amiga sua...” O sapo – verde, gordo – queimava. Tanto que golfou. Golfar é um verbo quase infantil, mas foi isso mesmo, ou algo assim.
Vamos aos fatos, ou àquilo que os precede.
Maio (no máximo, julho): recebe carta anônima - coisa de folhetim - dizendo que o homem, o que achava seu, tinha outra.
Março (no máximo, maio): ganha um anel com uma pedra do tamanho de uma joaninha e vermelha como tal – justo ela que nunca gostou de pedras? – mas aceitou, mesmo assim; adorava joaninhas. E fez planos.
Dezembro (ou fevereiro?): conhece o homem. Não sabe bem o porquê, mas é tomada por uma espécie de fascínio, um encantamento inexplicável, afinal ele não tinha nada de mais.
Abril (ou junho, que importa?): percebe o moço levemente distante. Cisma de mulher, encanação, delírio, desvario? Não podia ser... não assim, logo depois da joaninha. Besteira!
Maio ainda (julho?) – Dia sim, dia não. Depois da carta, os telefonemas. Voz feminina, chamada de número não identificável.
Junho (agosto, se tanto): o tempo lingüístico se cruza com o da narrativa e ela bate o celular na cara da tal mulher que não se cansa de ligar. Na verdade, o que ela faz é derrubar a ligação, juntando o flip à parte inferior do aparelho, pois “bater o celular na cara da tal mulher”, muito embora fosse o que ela realmente gostaria de ter feito, só é possível na linguagem. “Você vai ver! Fale com ele... Ele dirá que é intriga de alguma amiga sua...” Foi aí que engoliu o sapo e golfou.
Voltou pra cama, não foi trabalhar: estava péssima, a cabeça girava. Resolveu telefonar pro homem e tirar a história a limpo, já que a digestão e o dia inteiro já estavam perdidos.
- Carlos?
- Ana? O que foi?
- Aquela mulher me ligou de novo.
- E você continua encanando com isso? Deixa pra lá, amor, esquece. Deve ser alguma amiga sua querendo fazer intriga.... Alô? Ana? Alô?
Telefone desligado, lágrimas incontidas, enjôo. Sapo gordo amarrando a boca do estômago. Precisava de ar e abriu a janela.
A joaninha experimenta – no sentido literal - seu primeiro vôo.

2 comentários:

Anônimo disse...

era dezembro...talvez novembro. a recompensa chegara em tons de azul, numa escrita fadada a outros voos. azul não era o céu decididamente. também em dezembro ( talvez novembro ) quem espera alguma coisa azul ? seria eu o único ? mas chegou...enfim. foste tu Lina, quem me chegou. já não és azul...agora dás sentido a um frio teclado de computador. será q alguma coisa ainda faz sentido ? fez...
beijo doce...do outro lado do atlântico. Um beijo com 20 anos de atraso, sem baton, nem sabor a pêssego. talvez amarelecido pelo tempo. talvez afinal os reencontros façam sentido...
H.N.

L. disse...

"E ao imenso e possível oceano/ Ensinam estas Quinas, que aqui vês,/Que o mar com fim será grego ou romano:/O mar sem fim é português."
Que bela visita d'além mar me chega nessa manhã de sexta-feira... não com o calor de letras manuscritas, mas num frio teclado de computador, que - inegavelmente - é capaz de diminuir distâncias seculares e oceânicas...
beijo, H.N., já não precisamos mais de selos, apenas cliques. Suas cartas cibernéticas são muito bem vindas.