24 agosto, 2006

Vermelhas bocas

Há anos não vejo Lisette. Era ainda menina, quando a vi entrando no colégio pela primeira vez, no fim dos anos 70, talvez início dos 80. Tínhamos 10, 12 anos.
Quando eu olhava sua boca vermelha, só pensava no tamanho do exagero. Pra que todo aquele batom, se ela tinha a boca mais perfeita que já vi na vida? Bons contornos, não muita carne, nem pouca, riso farto, dentes grandes e alinhados. O problema mesmo era o batom. Eu sonhava beijar aquela boca perdida na imensidão de tanto vermelho e imaginava como conseguiria me livrar da mancha rubra que seu batom tingiria em minha boca, meus contornos, minha pele, meu protótipo de bigode que, naquela época, já ameaçava... Lisette e sua boca de fogo... Durante anos viveram nos meus sonhos e nos de todos os outros garotos do colégio. Se ao menos um de nós soubesse desse seu batom....
As outras meninas não usavam aquele tipo de maquiagem, apenas tons clarinhos, que deixavam seus lábios ao alcance da nossa libido e coragem, mas ela... O vermelho de sua boca nos enchia de desejos, porém a distância que ele impunha era tamanha, que passamos o ginásio inteiro admirando de longe e apostando pra ver quem, um dia, iria beijá-la; quem, primeiro, teria essa sorte e essa valentia. Se soubéssemos, Lisette... mas éramos apenas meninos a temer o ridículo de um beijo marcado.
No fim da oitava série, nos sentíamos prontos. Disputávamos a chance de, finalmente, tê-la nos braços e, para isso, valia qualquer coisa: brigas nos intervalos, jogos, apostas, trapaças. Houve até quem propusesse uma gincana, para que apenas o melhor tivesse o direito de se aproximar da boca mais perfeita que Deus colocou nesse mundo.
Quando chegou o tempo da formatura, já havíamos apostado muito dinheiro. Quem a beijasse, além do prazer de sua boca, levaria toda a bolada e a absoluta inveja dos demais. O único problema ainda era o batom. Não suportávamos a idéia de sermos marcados por aquele vermelho.
Na noite da formatura, Lisette estava linda. Não havia ninguém mais deslumbrante no mundo. Éramos 6 garotos, no melhor da adolescência, completamente enfeitiçados por uma menina de boca vermelha.
Foi aí que apareceu a Silvinha.
Nunca havíamos reparado nela antes, apesar de estudarmos juntos desde o primário, mas, naquela noite, ela estava deslumbrante, a bordo de um vestido longo. E que boca! Meu Deus, como é que nunca vimos aquela boca antes? Vermelha, é claro, tanto quanto a de Lisette. Nesse momento, só tínhamos olhos pra ela, chegamos a pensar que, ainda que não conseguíssemos Lisette, sempre haveria Silvinha. Ah, se soubéssemos.... Mas éramos tolos garotos de 14 anos que nunca saíram do interior do mapa...
Linda e loura, ela atravessou o salão, sem olhar pra ninguém. Do outro lado, Lisette. Silvinha foi chegando mais perto, chegando mais perto... até que, com a sua boca vermelha, tocou, como fogo, o vermelho da boca de Lisette.
A festa inteira parou para ver aquela explosão carmim.
Ainda estávamos boquiabertos quando as duas cruzaram o salão, mãos dadas e maquiagem impecável, sem uma única marquinha ao redor da boca, deixando atrás de si um rastro de estupefação. Como podia ser possível que um beijo, vermelho desse jeito, não deixasse uma enorme mancha a tingir o rosto?
Hoje eu sei de batons vermelhos e seus segredos de maquiagem. Mas naquele tempo... ah... se nós soubéssemos....

4 comentários:

Anônimo disse...

Superb!

L. disse...

Oi, Helô!!! Bom tê-la por aqui! beijo

Anônimo disse...

Baiana querida,

Seus textos estão cada dia mais deliciosos como esse beijo carmim. Adoro sua originalidade!
Beijos na alma.

L. disse...

turkha linda, saudade de vc... beijos