18 julho, 2006

Relicário

Num canto escuro do armário, esquecida dos corre-corres prosaicos, há uma caixinha de guardados. Em outros tempos, seria um “relicário”, mas ela, moderna que é, prefere chamá-la “caixinha de guardados”.
Não se lembra dela com freqüência, quase nunca abre aquele canto escuro do armário, mas há ocasiões em que é ali que encontra alívio.
Sempre foi uma moça triste. “Não nasceu pra ser feliz”, ouviu dizer a mãe desde menina. No fundo, não consegue. Há sempre alguma coisa que não acontece, alguém que parte antes do tempo, alguém que nunca vem, algo que ela mesma não tem forças pra fazer.
Antes, quando acreditava, queria viver a vida inteira de uma só vez e embriagava-se daquilo que imaginava ser a sua porção de felicidade. Fazia planos, construía castelos, movia montanhas inteiras no ar. E sorria. Como sorria bonito, se soubesse... Mas tinha pressa, como tinha pressa! E um medo grande, que já nascia forte dentro do peito e a impedia de seguir em frente, de pegar o rumo certo. Então, parava. Travava, culpava a má sorte, o destino, o carma. Depois culpava a mãe, o pai, a avó, a bisavó, o tempo. Por fim, culpava a si mesma. Hoje não acredita em mais nada. Mas sempre haverá o relicário.
Sentada na beira da cama e imersa na penumbra da memória se entrega. Lê cartas que não conseguiu rasgar, revê fotos que já estiveram no porta-retratos, sente o aroma de flores que, hoje secas, pulsaram nos seus braços quentes de um dia. Depois acaricia, num ritual tantas vezes repetido, cada uma das lembranças de seus antigos amores. Pequenos mimos de tempos que não são mais.
No fundo mais fundo de sua caixa de guardados, há um anel. Quando a tristeza é grande, ela o coloca amarelo e brilhante na mão esquerda, fecha os olhos e baila ao som da valsa que sonhou para o casamento que não foi. Sorri, cumprimenta convidados, observa o buffet, a decoração, os músicos, os pais dançando, padrinhos e madrinhas felizes naquela que teria sido a melhor das festas. A mão direita, delicada, toca o anel que repousa no dedo da mão esquerda e ela imagina a igreja enfeitada de flores brancas e amarelas, sinos tocando e anunciando a entrada daquela que teria sido a mais linda das noivas.
Quando olha para o altar, vê a esperança morta nos olhos do rapaz que a espera. Se ela tivesse podido... Ah, se tivesse podido...
Abre os olhos e recoloca o anel no fundo mais fundo de sua caixa de guardados. Num canto escuro do armário, a moça triste esconde aquela que poderia ter sido sua mais feliz lembrança.

(texto inspirado no espetáculo "Clarices", em cartaz no Centro Cultural SP, Rua Vergueiro, 1000)

7 comentários:

Anônimo disse...

triste e deprimida como as personagens claricianas... Assisti a essa peça do CCSP. achei a montagem simples, mas vale à pena pelo texto primoroso da autora. ótimo texto.

Anônimo disse...

Baiana querida,
Um escrito "por demais" de bonito. No fundo d'alma de todo mundo tem sempre um relicário...
Beijos na alma.

Anônimo disse...

Lindo texto, sensível, emocionante. Quem não tem seu relicário?

Anônimo disse...

mto bonito mama!!! Qual eh a historia dessa peça ai?

Anônimo disse...

Bonito texto. Pena que o espetáculo não faz juz ao texto que inspirou. Gosto de personagens melancólicas e relicários. :0)

Anônimo disse...

Concordo com o que disse Júnia.O espetáculo acabou com a riqueza da Clarice e o pior cadê o inefável na peça?

Anônimo disse...

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