Conspícua

Janira era o nome dela. Assim que fez 18, prestou concurso e foi trabalhar num Hospital como atendente. Apesar das filas enormes e do mau humor generalizado que normalmente caracterizam o serviço público, Janira continuava sendo um doce de menina.
- Bom dia, como vai o senhor? Posso ajudar? Ta sentindo o que? Ah... dor abdominal... Desde quando? E tomou alguma coisa pra isso? Fica tranqüilo, viu? Aguarda só um pouquinho que o doutor já vai atender. Se quiser tomar uma agüinha, lá no fundo do corredor tem bebedouro.
Era assim. Passava o dia todo de bom humor, preenchendo as fichas dos pacientes que iam ao hospital. Todo mundo sabia que o “doutor” ia demorar pelo menos uma hora pra chamar, mas a delicadeza com que ela atendia cada uma das pessoas que chegavam a seu guichê, fazia com que a espera parecesse muito mais curta.
- Posso ajudar? O que é que a senhora tem? Nossa... caiu de cabeça? Tomou algum remédio? Ta doendo muito? O doutor já vai chamar... Tem uma máquina de café ali na frente, é só um real, viu? Vai lá, toma um cafezinho e aguarda um momentinho...
Um dia, veio a notícia: seria transferida. Ficou triste, gostava do hospital, mas agüentou firme quando o diretor lhe disse:
- Janira, a Secretaria da Saúde está inchada e você sabe, né? Ano de eleição não tem jeito! Tivemos que ceder alguém pra Segurança. Semana que vem, você começa num DP lá pros lados do Capão Redondo, mas presta atenção: público de DP não é que nem paciente de hospital, menina, você precisa aprender a ser mais conspícua!
Janira ouviu o recado. Conspícua, conspícua... Segunda feira, sete da manhã, se apresentou pro delegado de plantão, toda conspícua:
- Bom dia, doutor delegado, sou Janira, a atendente transferida da Secretaria da Saúde, a seu dispor.
- Minha filha, o que que cê tá fazendo aí parada me olhando que nem dois de paus? Vai lá pro atendimento trabalhar, anda! Segunda feira é dia de pico aqui no DP e o escrivão não veio! O que você vai fazer é muito simples: é só ficar ali na triagem e anotar o nome e a queixa na ficha, antes de me passar o caso. Depois, quando o escrivão estiver aí, te explica melhor seu trabalho. E presta atenção pra não me passar nenhuma informação errada!
- Mais conspícua... mais conspícua, Janira! - pensava ela, enquanto se dirigia ao guichê de triagem. Logo depois, chega o primeiro “cliente” do dia, algemado e acompanhado de um policial:
- Tentativa de homicídio. O meliante é Manuel Ferreira, português, mais conhecido como Manél-estripa-bode.
Janira anotou tudo direitinho, e o policial saiu, deixando o suspeito à espera do delegado. Será que é só isso? - pensou. Resolveu deixar a ficha do seu primeiro atendimento um pouco mais “conspícua” pra impressionar o delegado.
- O senhor usou que tipo de arma?
- Hein?
- A arma... foi arma de fogo, arma branca, pedaço de pau, veneno...
- Óh, pá! Não é da sua conta, rapariga! Não vou falar nada sem que tenha cá um advogado a me defender!
- Olha, senhor estripa-bode, o doutor já vai chamar e eu preciso preencher a sua ficha com todas as informações... A vítima estava sozinha? Ficou muito ferida? O senhor a conhece faz tempo? Ela reagiu?
- Oh, minina, tu ficas aí a perguntar tanto que estás a me deixar insano! A vítima é a rameira da minha senhora.
- Ah... “crime passional” - escreveu. E por que o senhor acha que a senhora estripa-bode é isso aí que o senhor disse?
- Foi meu cunhado que me disse que ela anda a prevaricar com o Manuel, da padaria.
- “Suposição baseada em testemunho de terceiros”. Sei... mas o senhor acha que isso é razão suficiente pra matar uma pessoa?
- Como é que eu poderia encarar meus patrícios lá no bairro depois disso? Não nasci pra ser cornudo, não, óh, minina!!
- Certo... “motivo torpe, seguido de ação intencional em defesa da honra supostamente ferida” – completou.

(continua...)