Da sacada de seu apartamento na Vila Madalena olhava o movimento dos carros e motos buscando vaga pra estacionar.
Morar ali era um sonho antigo; desde mocinha, adorava o movimento, o clima e o astral daquele lugar. Um dia, a corretora ligou. Correu pra ver e amou o prédio antigo, casas velhas na vizinhança, quarto arejado, varanda.
A varanda. Sempre quis morar num apartamento que tivesse uma varanda enorme, cheia de plantas. A sua era imensa, tinha rede e mesa de jardim com quatro cadeiras. Além das plantas. Uma prima paisagista arrumou tudo. É certo que cobrou caro, mas fez um trabalho ótimo. Às vezes, punha a mesa - xícara, torradeira, guardanapo, adoçante - e tomava café ali mesmo, no seu paraíso privado em pleno coração da Vila.
Com o tempo, o bairro foi crescendo e aquele inferno. Mas gostava, ainda assim. De vez em quando, à noitinha, logo que escurecia no seu jardim, descia (havia muitos bares na região) e tomava uma cerveja ou duas. Bohemia. Original, se tivesse. Depois voltava pra casa, no 13º andar daquele edifício cravado no coração do bairro e, de camarote, assistia à pulsação das ruas. Carros e motos frenéticos por uma vaga pra estacionar.
Da sacada de seu apartamento na Vila Madalena, pensou na vida e no que não foi.
No amor que acabou, no filho que não teve, nas festas em que não quis ir, nos amigos que não viu mais, nas viagens que deixou de fazer, na casa de praia que não comprou, no livro que pensou escrever, no instrumento que não ousou tocar, na dor que quase sentiu. Quase.
Depois teve saudade. Uma saudade sem sentido, de algo que não foi, mas poderia. E a vontade de voltar atrás, de olhar o que não fez, de desmanchar o vazio do espelho, de refazer o percurso.
Contudo.
Tudo o que conseguia ver, por mais que se dependurasse na sacada de seu apartamento eram os carros e motos que buscavam desesperadamente uma vaga pra estacionar.
Quarenta metros. Um pouco mais. Ou menos. Treze andares separavam seu jardim do negrume do asfalto.
Não houve dor. Nem pranto. Não houve carta. Nem bilhete (e ela teria adorado escrever esse momento). Não houve motivo. Nem tempo. Seus olhos, abertos e opacos, viam um filete vermelho e espesso escorrer do canto da boca. Vizinhos curiosos observavam do conforto de suas próprias sacadas.
Essa prometia ser uma noite linda. Amores começariam, viagens seriam planejadas, filhos desejados, livros começados, violões, pianos e saxofones tocados, casas construídas, festas se encheriam de amigos. Daqui a pouco, quando finalmente escurecesse no seu jardim, quem sabe descesse e tomasse uma Bohemia. Original, se tivesse. Depois voltaria pra casa e da sacada de seu apartamento poderia ver todos aqueles carros e motos buscando alucinados uma vaga pra estacionar na pulsação das ruas de seu paraíso privado, em pleno coração da Vila Madalena.
27 junho, 2006
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6 comentários:
Que triste. Ela pulou? Ou se viou lá de cima?
Que interessante... Depois te mando o que escrevi - mas não postei - na mesma noite...
Tô esperando, toureira, mandaí!
Excelente. Texto ácido, com uma pitada de poético.
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