Manhã. Dia claro que raiava. Margot esperava Harold que não voltara noite passada. Às vezes era assim. Ele não telefonava, tampouco chegava. O jantar, frio, sobre o fogão, amanhecia ressecado, como a voz na garganta, como a palavra calada logo depois de nascida.
Maria Gorette da Silva. Gorette quando criança, Margot, depois de conhecer Harold, na verdade Luis Haroldo – ele nunca se conformou com o nome de batismo, homenagem ao avô paterno, Luis, e a Haroldo de Campos: seu pai era homem das letras.
Passou a noite esperando na janela. Carros iam e vinham, cães latiam, gatos namoravam no telhado das casas ao lado de seu edifício. Nada. Moravam no primeiro andar e podiam ouvir todos os sons da rua: da noite e do dia. Depois, o silêncio - o silêncio dava um tom de morte àquela noite escura. Lá pelas cinco, já era dia claro e os bem-te-vis cantarolavam acordando a vizinhança. Os bem-te-vis começavam mais cedo e se recolhiam mais cedo, aves têm muito o que fazer; às seis era a vez dos sabiás.
Margot cochilava sentada na poltrona da sala, quando ouviu o som da chave que abria a porta. Nem bem entrou, já foi logo esbravejando:
- Você não dormiu de novo, Margot? Ficou a noite inteira sentada no sofá desesperada me esperando? Já não te disse pra não fazer isso?
Ela se levantou e, olhando fixamente o homem desarrumado da noite anterior, perguntou:
- Uma viagem?
- Sim, uma viagem inesperada.
- Outra? - ele não respondeu. Deu-lhe as costas e foi até a cozinha procurar o que comer.
A mulher, cansada das viagens de seu homem, dirigiu-se ao quarto e apanhou o revólver sob o travesseiro. Fora de seu pai e, agora, dela, por herança. Uma bala. A pólvora ainda estaria boa? Devia estar ali há anos...
Voltou à sala e mirou bem no meio da testa do marido que mastigava uma coxa fria de frango enquanto lia o jornal. Segurou a arma com as duas mãos e puxou o gatilho. Com os olhos fixos na seção de esportes, Luis Haroldo tombou lento e vermelho sobre a notícia não lida da derrota de seu time.
Margot abriu a porta e chamou o elevador. “Uma viagem inesperada”, repetia consigo. “Uma viagem inesperada, desesperada.”
Os sabiás ainda cantavam acordando os vizinhos que dormiam até mais tarde. Os bem-te-vis, não. Já se haviam recolhido, pois tinham muito o que fazer.
02 maio, 2006
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4 comentários:
Coincidentemente tive que fazer uma viagem inesperada e desesperada também. Não tive tempo de me despedir do bem-te-vi despertador, ele ainda deve estar cantando todas as manhãs, à espera do meu bom dia!
"Que semelhança entre o nosso fadário, só que eu fiz o contrário do que o Luis Haroldo fez...(livre adaptação da música "João de Barro"), Nosso Senhor, me deu forças nessa hora..." e refugiei-me na selva, entrincheirada novamente contra a voracidade do meu próprio exército branco.
Seu texto rodrigueano é genial, assim como todos os seus escritos.
Obrigada, mana querida! Beijos na alma.
Esperar...
des-esperar...
In-esperar...
Ins-pirar...
ou pirar?
Experimentar...
ex-peri-menta-ar...
cheiro e sabor.
Turkhesa querida!!! Que bom ter seu comentário aqui... Esse texto foi inspirado no título do teu email, mas Margot e Luis Haroldo são personagens totalmente ficcionais, é claro. (tenho certeza de que os bem-te-vis andam cantando aí no castelo, ainda mais com um arco-íris na janela...) beijo grande
Pier, dear!!!! Saudade muita. nosso almoço sai ou não sai? Ainda estou na fase do "esperar" pelo retorno das minhas ligações... rsss... besos
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