06 fevereiro, 2006

Dois Lados

UM LADO
Acordou às seis, como todos os dias. Tomou um gole do café ralo que a mãe deixava pronto e saiu. Desde que aprendeu a fazer malabarismo com os limões que pegava no chão da feira, o menino Josué não ia mais à escola. Precisava ajudar a manter a casa, os seis irmãos menores e aquele pequeno trabalho lhe garantia uns vinte reais por dia.
Pegou dois ônibus para chegar ao cruzamento da Bandeirantes com a Santo Amaro, onde trabalhava. Não tinha ganhado quase nada, quando o carro prata parou. Foi para a frente do carro e, sorrindo, fez o melhor que pode. Já conseguia equilibrar 6 limões sem deixar cair, depois jogava um no pescoço, passava outro por debaixo das pernas e por detrás da cabeça. Não ia tentar seu truque novo, de parar um limão no nariz enquanto continuava jogando os outros cinco, pois ainda precisava de mais ensaio. Tinha medo de não fazer bonito e não ganhar a gorjeta no fim do espetáculo.
Quando terminou, foi para o lado do motorista e, aproveitando a janela aberta, pediu: “moço, dá um trocado?”. O carro era dirigido por um senhor de meia idade, perto dos cinqüenta anos. Sem olhar para o garoto, ele pegou sua carteira e lhe entregou. O menino Josué não entendeu, mas a abriu e pegou uma nota de um real, espantado com todo o dinheiro que havia ali. O homem não disse nada, nem pegou de volta sua carteira. O garoto, estranhando aquela bondade, arriscou: “moço, dá o celular?” O homem deu. “Moço, dá o relógio?” O homem desabotoou o relógio dourado que trazia no pulso e, sem esboçar reação, o entregou. “Moço, dá o rádio do carro?” O homem retirou a frente do rádio e a deu ao moleque que, assustado e sem acreditar no que acontecia, aproveitou a demora do sinal e atravessou a Bandeirantes correndo, apenas preocupado em fazer a mãe acreditar que não havia roubado nada.
OUTRO LADO
Acordou às seis, como todos os dias. Tomou banho, parou em frente ao closet e pensou em que terno vestir. Depois, tomou o lauto desjejum preparado pela empregada, a mulher e as meninas logo estariam de pé. Josué tinha um casamento de vinte e cinco anos e quatro filhas, todas na faculdade. A mais velha se casaria no fim do ano e ele já havia lhe prometido a lua de mel na Europa como presente.
Ingressou no banco muito jovem e este ano completaria 30 anos de serviço, mas ainda precisaria trabalhar algum tempo para poder se aposentar e manter o padrão de vida da família. Quando o banco foi privatizado teve medo, mas o tempo foi passando e ele foi ficando, era muito competente.
Chegou às oito, como sempre e, sobre sua mesa, havia um envelope. Ao abrir, viu que havia recebido uma carta de demissão. Assim: sem despedidas, sem placa de prata, sem churrasco de aposentadoria, sem discurso, sem explicação. Apenas uma data, na qual deveria comparecer ao sindicato para homologação. Precisava deixar o prédio imediatamente. Suas coisas seriam enviadas depois, por um portador.
Deu a vida por aquele emprego, vestiu e suou muito a camisa. Trabalhou aos finais de semana sem ganhar hora extra, nunca saiu antes do seu horário, nunca faltou para levar uma filha ao médico, nunca foi a batizado, formatura ou aniversário que comprometesse sua vida profissional. Como puderam fazer isso com ele?
Pegou o carro e saiu desesperado, cantando pneu na rampa do estacionamento. Não sabia como contar à família, não poderia manter o padrão de vida, pagar a faculdade das filhas, academia, empregada, a festa de bodas de prata, o casamento da mais velha, lua de mel na Europa... E aonde iria todos os dias de manhã? Entendeu que sua vida, sem o trabalho, não tinha o menor sentido.
Na esquina da Bandeirantes com a Santo Amaro, pensava nos 30 anos não reconhecidos, no quanto foi usado esse tempo todo, na porcaria de vida que levou por causa do banco. Pensou também no seguro de vida. Daria pra deixar a família muito bem. O sinal fechou e ele mirou o caminhão que estava mais à frente. Havia algumas crianças pedindo esmola, outras vendendo balas, mas ele só conseguia ver o caminhão do outro lado da Bandeirantes. O moleque parou na sua janela. “Assalto!”, pensou. Entregou a carteira, o celular, o relógio. Até a frente do rádio o desgraçado pediu, antes de sair correndo. Nada mais importava mesmo. O sinal abriu; Josué acelerou tudo o que podia e enfiou o carro embaixo do caminhão de cerveja que ia pra Baixada.

O menino Josué, que esperava o ônibus num ponto mais à frente na Santo Amaro, viu a confusão e voltou correndo para apanhar umas latinhas de cerveja. Hoje tinha sido mesmo o seu dia.

2 comentários:

Anônimo disse...

Simplesmente atual! Fantástico!

Anônimo disse...

Encanto-me com sua sensibilidade, com sua arte de digerir o cotidiano e expressar em "prosa poética" o que há de mais humano.Beijocas na alma.